Antônio Sabino do Monte foi o primeiro a ocupar o cargo de Procurador-Geral do Estado, denominação então utilizada para se referir ao chefe do Ministério Público estadual. Até a década de 1970, essa era a nomenclatura oficial do cargo, que só passou a ser chamado de Procurador-Geral de Justiça após a criação da Procuradoria-Geral do Estado, em 1976 — órgão responsável pela representação judicial do Poder Executivo. Até então, cabia ao chefe do Ministério Público cearense exercer também essa função.
A trajetória de Antônio Sabino, figura central da vida política e jurídica cearense entre o final do Império (1822 – 1889) e as primeiras anos da República (1889), se confunde com a própria consolidação do Ministério Público do Ceará como instituição essencial ao sistema republicano. Como Procurador-Geral do Estado, exerceu papel decisivo na organização do sistema judiciário local, sendo protagonista de momentos-chave da transição institucional e do fortalecimento das funções do Ministério Público no novo regime republicano.

Antônio Sabino do Monte, primeiro Procurador-Geral do Estado.
Dois documentos ilustram o papel do Procurador-Geral e do Ministério Público no início da República: o relatório de 1893 sobre atuação dos promotores nas comarcas cearenses e a petição de 1894 ao STF na defesa territorial do Ceará. Para compreender a relevância dessa atuação e desses documentos, é preciso retornar às origens de Antônio Sabino do Monte, cuja trajetória reflete os caminhos trilhados pelas elites políticas e jurídicas do período.
Antônio Sabino do Monte nasceu em Sobral, no Ceará, em 11 de julho de 1846. Na época, Sobral era uma das principais cidades da província, situada à margem do rio Acaraú, o segundo maior curso d’água do estado. A cidade experimentou um grande desenvolvimento durante os períodos das charqueadas e do ciclo do algodão, o que possibilitou o surgimento de uma elite política, econômica e religiosa que se destacava nos eventos mais importantes do Ceará desde o período colonial.
Seguindo um caminho similar ao de muitos contemporâneos, Antônio Sabino do Monte mudou-se para Pernambuco, onde formou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Recife, em novembro de 1870. Naquela época, a formação jurídica era um privilégio de poucos, e tornar-se advogado era sinônimo de ascensão a cargos de prestígio na sociedade e no aparelho estatal.


Lista dos estudantes matriculadas na Faculdade de Direito do Recife datado de 1866.
Em 1871, assumiu o cargo de promotor público em sua cidade natal. Meses depois, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde atuou como promotor na comarca de Cantagallo (RJ) e, em seguida, foi nomeado juiz municipal em Mangaratiba (RJ). No entanto, a permanência no Rio foi interrompida devido a sérios problemas de saúde, que o forçaram a retornar ao Ceará em 1874, onde reassumiu o cargo de promotor e atuou nas comarcas de Canindé, Aquiraz e Maranguape.
Em 1878, o Presidente da Província, José Júlio de Albuquerque, nomeou Antônio Sabino para o cargo de Chefe de Polícia do Ceará, função criada pelo Imperador D. Pedro II por meio da Lei n° 261 de 1841, que reformava o Código de Processo Criminal e transferia para esse cargo muitas das atribuições que anteriormente competiam ao juiz de paz. Além disso, Antônio Sabino exerceu, brevemente, a presidência da Província da Paraíba entre 1884 e 1885, nomeado pelo Imperador.
Nos últimos anos do Império brasileiro, Sabino retornou ao Ceará e passou a atuar como promotor na comarca de Santa Anna do Acarahú (CE), onde permaneceu até 1889. Após a Proclamação da República, continuou a exercer grande influência política e jurídica no Ceará. Em 1891, foi eleito deputado na Assembleia responsável pela aprovação da Primeira Constituição do Estado, participando ativamente da criação da Carta Magna estadual. Nesse mesmo ano, o então interventor, General Clarindo de Queiroz, nomeou-o desembargador do Tribunal da Relação do Ceará (corresponde atualmente ao Tribunal de Justiça do Ceará), cargo de destaque no Judiciário cearense.
A Constituição do Estado de 1891, no artigo 52, estabeleceu a criação do cargo de Procurador-Geral do Estado junto ao Tribunal de Relação. De acordo com a constituição, cabia ao chefe do Poder Executivo Estadual escolher um dos membros do tribunal para ocupar a função de Procurador-Geral. Antônio Sabino foi nomeado para esse cargo pelo vice-presidente do Estado, Benjamin Liberato Barroso, em fevereiro de 1892.
Após o primeiro ano como Procurador-Geral do Estado, Antônio Sabino do Monte enviou ao chefe do Poder Executivo do Estado do Ceará, José Freire Bezerril Fontenelle, um relatório sobre as atividades do Ministério Público do Ceará. Há indícios de que o documento seja um dos primeiros registros do trabalho dos promotores de Justiça no estado.
Inicialmente, Antônio Sabino aborda a atuação como desembargador do Tribunal da Relação. Ao longo do relatório, é apresentada uma síntese dos movimentos dos promotores de Justiça nas comarcas. São mencionadas, ao todo, 11 comarcas: Fortaleza, Maranguape, Baturité, Sobral, Benjamin Constant (atualmente Mombaça), Icó, Iguatu, Inhamuns (atualmente Tauá), Assaré, Jardim e Granja. Como o documento não informa os nomes dos promotores de Justiça, foram consultados os jornais do ano em que o relatório foi redigido, em especial o “A República”, onde foram localizadas referências aos promotores dessas comarcas, com exceção de Granja, Icó, Baturité e Inhamuns conforme listado a seguir: Domingos da Silva Guimarães (Fortaleza); Manoel Guerreiro de Souza Pinheiro (Maranguape); Guariguazil Jefferson Barreto (Sobral); Antônio Arthur (Benjamin Constant); Belisário Cícero Alexandrino (Iguatu); Joaquim Bastos de Oliveira (Adjunto de promotor de Assaré) e João Gomes da Silva Brasílio (adjunto de promotor de justiça de Jardim).
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No breve relato sobre cada comarca, há exposição dos processos ocorridos em cada uma delas. Embora resumido, o documento é de grande importância, pois representa uma tentativa de uniformizar a atuação dos promotores de Justiça e de manter o presidente do estado, Bezerril Fontenele, informado sobre os acontecimentos em cada comarca. É provável que, nos anos seguintes, outros relatórios tenham sido enviados, mas não há registros acessíveis até o momento.
Em relação à defesa territorial do Ceará, Antônio Sabino do Monte apresentou, em 1894, uma petição ao STF, solicitando que a suprema corte decidisse o “conflito de Grossos”, uma localidade na província do Rio Grande do Norte, alvo de disputa territorial com o Ceará desde os anos 1700. O Ceará tinha interesse em ampliar as áreas de criação de gado e facilitar o acesso ao sal, um elemento imprescindível para a fabricação do charque, encontrado em abundância naquela região, próximo a Mossoró. Com a Proclamação da República, a reordenação da cobrança de impostos na área se tornou uma questão central do conflito, que teve como estopim o naufrágio de um navio norueguês nas imediações do morro de Tibau, também em RN. O navio estava carregado de sal retirado de Grossos e os impostos dessa transação haviam sido pagos ao Rio Grande do Norte. Antônio Sabino reivindicava a coleta de impostos da região para a Fazenda do Ceará. Inclusive, alegou que o território cearense estaria sendo invadido pelo RN e cobrou do STF um posicionamento.

Petição encaminhada ao STF pelo Procurador-Geral sobre a disputa territorial envolvendo os estados do Ceará e do Rio Grande do Norte.
Para embasar a petição, Antônio Sabino elencou inúmeros documentos comprobatórios de que desde os primórdios da ocupação colonial a referida região estava agregada ao território cearense, cujos limites encontravam-se delimitados pelo rio Mossoró e por um marco fixado nas imediações da praia de Touros. Essa delimitação havia sido informada em uma data de sesmaria concedida pelo capitão-mor do Ceará, Sebastião de Sá, a João de Freitas Correa e Dona Maria Cesar, ainda no ano de 1681. Em 1700, os oficiais da Câmara da Vila de São José de Ribamar formularam outro documento em que validavam essa delimitação.
Em 1787, a Câmara da Vila de Aracati — que, durante o ciclo do gado, foi a mais próspera da província — enviou à rainha Dona Maria I uma petição solicitando a ampliação de seus domínios até as imediações do rio Mossoró, com o objetivo de facilitar o desenvolvimento do comércio e da pecuária na região. Pedido que foi confirmado por carta régia em 1793, sem oposição do governador de Pernambuco, que naquela época cuidava das duas províncias litigantes. Esses limites foram confirmados ainda pelo ouvidor da comarca do Ceará, o bacharel Manoel Leocádio, em 1801.
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Com esmero, Sabino do Monte segue apontando outros documentos históricos que corroboram com a sua tese, provenientes de diversas fontes: das câmaras municipais, do governo imperial, da igreja, de pesquisadores locais (como o senador Pompeu, no livro Diccionário Topographico) e de registros em diários de viajantes, como é o caso de Henry Koster. Durante a argumentação, Antônio Sabino lança mão de documentos oriundos inclusive do Rio Grande do Norte, como é o caso da resolução do conselho provincial do RN, de abril de 1833.
À revelia de todos os argumentos utilizados por Antônio Sabino, o litígio se arrastou por anos, terminando apenas em 1920, quando o STF emitiu um parecer favorável ao Rio Grande do Norte e o município de Grossos foi formalmente anexado ao território potiguar.
Sabino permaneceu como Procurador-Geral do Estado até 1921. Durante esse período, atuou em diversas áreas: em questões relacionadas ao cangaço, secas e retirantes e na defesa do território cearense. Além disso, estruturou e deu maior respaldo institucional ao Ministério Público cearense.
Tanto o relatório de 1893 quanto a petição ao Supremo Tribunal Federal de 1894 revelam a amplitude da atuação do Ministério Público estadual no início do sistema republicano. Esses documentos não apenas oferecem um raro testemunho sobre o funcionamento do sistema de justiça, como também evidenciam o papel do então procurador-geral do Estado e o protagonismo do MP do Ceará em questões fundamentais. Para a história institucional, esses registros constituem fontes preciosas que permitem compreender as práticas, competências e desafios enfrentados pelos promotores de Justiça no final do século XIX.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERNANDES, Saul Estevam. O (in)imaginável elefante mal-ajambrado: a retomada da questão de limites entre o Ceará e o Rio Grande do Norte e a formação espacial e identitária norte-rio-grandense (1894-1920). Natal: IFRN, 2016, 129p.